À SOCIEDADE
Prezados cidadãos e cidadãs do Brasil, É com imensurável entusiasmo que escrevo esta carta para descrever e socializar minhas experiências nas Rodas de Conversas enquanto estou Professor da Primeira Turma de Jovens e Adultos na Escola Dr. Ipê Cana Brasil, situada na comunidade quilombola de Praianos, área do campo no município de Ichu (BA).
É com disciplinada perspicácia, firmeza, domínio dos fatos neste lugar de fala, os quais, a sequência desta carta revelará o quão grande ato elementar, tenho propriedade, autoridade e até mesmo coragem necessária para trazer à luz do conhecimento a grandeza pela qual alguém precisa sempre se reinventar e mostrar que é possível fazer o novo pedagógico, porém, sem abrir mão de dizer das agruras, dos gargalos e das angústias e porventura, também, dos dessabores que todo profissional que se propõe o novo perpassa para superar o fatalismo do “é assim mesmo”, e mesmo assim, poder dizer em alto e bom tom: não é uma opção desistir daquilo que lutamos e acreditamos. Porque, pois, não é assim mesmo, pode e deve ser de outro jeito, pode e deve ser diferente.
Meus relatos proativos de práticas inovadoras ou pioneiras, como a própria educação pública do município que atuo, define esse novo jeito de fazer a EJA local, bem como alguns dos resultados citados, o que irei registrar sobre mim, não tem em nada constatação de estado de pessimismo, está mais para um depoimento atento de quem vê, observa e intervém no meio e nisso se indigna com os fatos e se descobre ativo em buscar dias melhores para uma camada importante para a nossa sociedade. Antes, eu confesso, nem sabia que existia a EJA Combinada; mas também confessarei que foi amor à primeira vista, quando fui apresentado a ela, que é inclusive assegurada por lei, como legítima e necessária modalidade de ensino para jovens e adultos de comunidades rurais e remanescentes quilombolas, ainda que trabalhos desta natureza, com estes sujeitos, já se dessem em outros espaços.
A princípio autodidata, no exercício de ser quilombola e ser liderança da mesma comunidade e depois por meios formativos, fiz registros das histórias e identidades; fui professor do Projeto Mova Brasil, em 2011, cujos trabalhos renderam notoriedade até em boletim nacional; fui Diretor, de 2013 a 2017, da escola que atualmente ensino. O acúmulo destas experiências tornou-me capaz de reformar, dar nova cara e ampliar, em mais que o dobro e espaço físico, uma escola com pisos rachados nas salas de aulas e lousa de giz.
Meu primeiro certificado para lecionar na EJA veio pelo Instituto Paulo Freire, em exercício da turma. Já diretor, tentei Administração por ver diferente como se deve gerir a educação. Tranquei a faculdade no meio, por dificuldades financeiras. Em 2022 aceitei o convite de ser pioneiro nos moldes desse tipo de educação e logo obtivemos os primeiros excelentes resultados, ainda no primeiro ano. Fiz o curso técnico em Andragogia, de forma acelerada, no qual obtive nota máxima em chamada única e entrei para a faculdade de Pedagogia.
Mas considero importante dizer dos trabalhos que realizei antes de estar onde estou hoje, como trabalhos braçais no campo e outros com carteira assinada, às vezes, nas indústrias de calçados em Minas Gerais. Todos esses fatos, por um lado, revelam a minha predisposição para o trabalho honesto, seja qual for. Contudo, bem mais importante que isso, registra a dicotomia ou a incoerência fatídica de como alguém é ao mesmo tempo promissor, propulsor e pioneiro de uma modalidade tão carente de recursos, mas que é igualmente desvalorizado no que se refere a um plano claro de carreira e reconhecimento a aquilo que entrega a contento, mesmo sendo referência no meio, diante inclusive de outros profissionais com cargos acima na cadeia de comando. Não estou com isso advogando em causa própria, mas não há como deixar de ver esses fatos como algo totalmente discrepante ou dissonante da proposta de fazer de fato e de direito que a EJA se torne, por excelência, um espaço de evolução e de valorização e de compensação dos esforços e da dedicação quase que religiosa, não apenas por parte dos estudantes, mas também do profissional que está imbuído intensa e proativamente nessa causa, que é vencer a barreira do analfabetismo entre Jovens e Adultos brasileiros. Em tempo, deve-se constar que a quadra poliesportiva a ser construída nesta localidade e que fora encaminhada junto ao prefeito, que esteve presente em uma das nossas primeiras Rodas de Conversa, ainda em 2022, terá a escola que atuo como posterior gestora, iniciará os seus trabalhos com conclusão da obra ainda no ano de 2024.
Cabe aqui então a devida pergunta reflexiva: como pode o professor de EJA, em pleno exercício de sua função em sala de aula, propor e incentivar que seus alunos se desenvolvam e agarrem as oportunidades, se a este mesmo professor, em muitos casos essas oportunidades, essas possibilidades de desenvolvimento são negadas?
Após um longo período, de aproximadamente sete anos, sem o município conseguir oferecer a modalidade de ensino para Jovens e Adultos, no campo ou na cidade, recebi o convite que me veio como um desafio: implantar a primeira turma para esse público, que para eles seria como um marco, dada a importância desse direito básico para aqueles que viram a dureza da vida de camponeses retirarem deles os meios de vencer o analfabetismo, ainda flagrante na população brasileira, sobretudo, no campo. Para uma remanescência quilombola era também uma oportunidade de celebrar e vivenciar a identidade cultural local dentro das concepções pedagógicas e andragógicas.
O modelo de EJA que adotamos é, pois, a EJA Combinada, para o campo e para os quilombos, que consiste em uma metodologia presencial e semipresencial, que se dá da seguinte forma: quatro dias semanais de aulas, sendo dois na sala de aula e dois dias de visitas aos alunos em seus lares. Ao receber essa missão da equipe de coordenação técnica da Secretaria de Educação do Município, propus a ela um projeto há muito pensado: as Rodas de Conversa, inspiradas nos Ciclos de Cultura Freirianos, iniciadas em 2022. As aulas da turma, e suas proposições altruístas, com pioneirismo de vanguarda, registraram as experiências marcantes e exitosas, que fazem nossas práticas pedagógicas e/ou andragógicas não serem mais do mesmo, com média de uma roda de conversa ao mês, promovendo momentos cidadãos, ao menos trinta até o presente momento.
Nas Rodas de Conversa, ao longo dos anos de 2022 e 2023, foi possível ter a presença de várias autoridades do município, desde o prefeito a vereadores e secretários municipais, propiciando ações geradoras que, em sua maioria, foram realizadas com sucesso. Vale mencionar as principais delas, bem como seus respectivos parceiros da turma, como a 1.ª Feira de Saúde da EJA, da Escola M. Dr. Ipê Cana Brasil, ocorrida em 23 de maio de 2024, que atraiu de modo bastante abrangente a comunidade interessada.
Os espaços de exercícios de nossos saberes e viveres foram e são muitos, seja nas manifestações corporais ou na oralidade, contada, cantada ou versada do repente, ou em sambas de roda.
Esse novo jeito de ensino e de aprendizado para um público que usa os resultados desse método, em tempo real, para atender e contemplar suas demandas diárias, sugere que, fora dele, tal público continuaria sem chance de lutar com as armas corretas contra os descasos que o sistema impõe a todos nós, dia após dia. E é por isto mesmo, por esse novo jeito de ensino e de aprendizado, que é de grande satisfação integrar o Movimento de Educação de Jovens e Adultos em uma comunidade campesina e quilombola, vivenciar e convivenciar.
A prática do fortalecimento e da celebração da cultura de identidade através da educação prazeirosa e contextualizada, numa “quilombogia” de quase dois séculos de existência8, sem margem para dúvidas, é possível afirmar, mesmo que de forma propositiva, que a maior e melhor ação geradora dessa prática de autonomia cidadã fora exatamente provocar as suas estadias e assentadas nessas Rodas de Conversa, que, como o próprio nome sugere, é a experiência perfeita do exercício do direito de igualdade de vez e de voz nos espaços de construção de política de bem estar de, com e para todos.
Resultados exitosos como, luta para ajustes de postes de energia elétrica que se encontravam inclinados, pondo em risco a vida dos moradores locais; realização em sala de aula de feira da agricultura familiar e solidária, através da troca de produtos produzidos pelos moradores; parceria com uma rede de laboratórios para realizar checkup nas campanhas do Outubro Rosa e Novembro Azul, como turma pioneira e referência das outras sete existentes atualmente em todo o território municipal. Muitas dessas experiências pedagógicas estão sendo praticadas satisfatoriamente.
Sendo as Rodas de Conversa propostas e executadas sob minha coordenação e articulação, o recurso principal que visa a proporcionar de forma entusiasmada o ensino que estamos propondo, está longe de ser algo inócuo, enfadonho, sem objetivo ou fora de atender suas perspectivas. Para além de pensar ou querer recuperar o tempo perdido, é, pois, sair da casinha, e pensar/fazer outros modos de ser professor e estar na docência na EJA.
Como sempre costumo falar no chão da sala de aula, saindo das suas quatro paredes e descobrindo juntos como se posicionar e intervir no meio, com chances um pouco mais justas e também assertivas de vencer.
Devo por gosto esperançar que a EJA seja, em um tempo não tão tardio, um lugar de fala, onde o processo de ensino-aprendizagem amplie seus horizontes no que se refere a valorizar de fato as vivências e as realidades que os alunos enfrentam; que faça criar neles o gosto por voltar à sala de aula; de desenvolver em si mesmos a motivação e o interesse em continuarem acessando as possibilidades de conhecer, aprender e ampliar os seus conhecimentos, para que, com suas experiências de vida, suas leituras de mundo se tornem sujeitos um pouco mais autores e autônomos de suas próprias histórias.
Diferente das outras modalidades de ensino, a EJA tem a realidade de conquistar e convencer estudantes adultos a voltar à sala de aula, à alfabetização. Para isso, é necessário que os investimentos estratégicos, tais quais oferecer aos seus estudantes um ambiente escolar ativo, como acontece nas outras modalidades, sobretudo com a presença da equipe de profissionais da educação, e não apenas em muitos casos apenas o professor e os alunos na escola, merenda escolar variada e especifica para este público, transporte de qualidade, planejamento e programa pedagógico contínuo e, em conformidade para melhor atendê-los, salas com moveis e luz adequados, conteúdos e aplicação de temáticas e instrumentos como as Rodas de Conversa, que ressignifiquem o novo fazer pedagógico, momentos e espaços amplos de socialização, comemoração, celebração e promoção inclusive da cultura e da identidade cultural do alunado, sejam realizados de forma planejada, programática e assertiva, de maneira que garanta a prática da Educação de Jovens e Adultos uma experiência exitosa e que cumpra a sua missão de educar e, incentivo concreto às novas qualificações e reciclagem de habilidades, por meio de cursos e treinamentos específicos ou estratégicos para os profissionais que atendem e atuam na EJA.
Atuar na EJA exige uma sensibilidade a mais principalmente do professor, é nele que o estudante projeta suas intenções positivas ou negativas em querer ou não entrar e permanecer no processo de ensino aprendizagem. Nisso, uma maior e melhor valorização do professor, com condições para além do básico, que ele possa ser incentivado a, em contato direto com seu alunado, ampliar os horizontes e perspectivas, garantindo avanços, consolidação e expansão progressiva da modalidade.
As Políticas Públicas no ambiente da EJA se realizam quando professores e todos os demais profissionais da educação estão voltados e aptos a compreender, condicionar e proporcionar a pratica pedagógica com entusiasmo, profissionalismo, amor e dedicação ao fazer acontecer o processo de educar sujeitos de histórias vividas, porém, é preciso que se tenha uma formação contínua e inclinada a atender esses anseios, valorização, ampliação e acolhimento de novas práticas pedagógicas e também seus expositores, os quais devem ser incenti- vados, encorajados, valorizados e reconhecidos com melhores e maiores oportunidades de salários e de plano de carreira mais justo.
A prática educacional e docente da EJA não deve ser uma mera descompromissada oportunidade de ocupação, a qual se caracterize como um meio de pessoas sem afinidades ou preparo qualificativo ou, do ponto de vista de experiência, tenha na mesma apenas um meio de como pagar suas contas ao findar de um mês. Praticar a Educação de Jovens e Adultos é, pois, oferecer dignidade, valorização e reconhecimento ao papel exercido no chão da sala de aula, quer seja financeiro ou quer seja de promoção dentro da equipe, via mérito e comprometimento, capacidade, capacitação e principalmente entrega dedicada, sistêmica inovadora de resultados, porque ser profissional ou professor dessa área do conhecimento requer um pensar e um fazer pedagógico diferente.
Nenhum educador da EJA se mantém nela ausente de um gosto e um querer diferente, em atender aos motivos pelos quais pessoas adultas decidiram voltar ao ambiente de sala de aula para ter respostas imediatas a suas realidades e dificuldades cotidianas, em se moverem nos dados às vezes flagrantes para simplesmente constar no grupo das pessoas que estão aptas a lutar em pé de igualdade no que se refere à oportunidade de ir atrás de seus objetivos.
É preciso que se faça sabido que a EJA é uma condição especial de ensino, não na forma de ser tida como contrária das práticas legítimas de educação, sobretudo aonde apenas estudantes com a idade/série compatível sejam tratados como alocados em modalidade normal de ensino. Para isso é preciso adoção de novas e concretas práticas efetivas, de Políticas Públicas que venham realmente atender e contemplar este público de grande valia para a melhor dinâmica cole- tiva e qualificada da nossa sociedade, composta por cidadãs e cidadãos sobretudo brasileiras e brasileiros.
Ichu, 29 de julho 2024.
Por Samuel Pedro Lima da Silva, extraído do Livro - Práticas Educativas para EJA Integrada à EPT: diálogos no âmbito do Projeto EJA-EPT do IF Baiano